31 de janeiro de 2009


Minha violência é um monstro às avessas. A energia da dor e do sofrimento alimenta um ser que é como veneno letal condensado, de uma dor mágica e enegrecida pelas formas e pelo tempo. Ela é uma cobra sem boca, uma abelha sem ferrão, um escorpião sem cauda, uma água-viva sem toxina, um orifício sem espinho, um leão sem dentes, um gavião sem olhos. Minha violência não extravasa, ela se dissolve em mim e se acumula em cada extremidade, em cada pedaço de meu corpo, estou tomado pela raiva e pela culpa, e como não consigo extingui-las, nem esquece-las, nem transpassa-las, elas me envenenam, me envelhecem, me definham, minha violência me mata por que ela compete com o ímpeto de vida que habita em mim. Minha raiva e meu ódio não podem ser compartilhados porque não mudam a história, porque não reescrevem meu nascimento, porque não alteram a dor do que passou, as palavras que foram ditas, as cenas assitidas, os socorros não atendidos, minha raiva é como um amor não correspondido, como minha maior e mais profunda paixão rechaçada na mais perfeita comparação, na mesma proporção. Pergunto agora o que faço com toda a dor, a mágua, a raiva, a rejeição, e aqueles dias eternos dessa vida tão curta mais tão marcada, o que fazer de uma vida que começou torta, errada, incompleta. Eu não encontro reflexo do que sinto no mundo palpável, meus sentimentos são indesejáveis, condenados, desaprovados, inoportunos. Onde foi que eu errei é mais uma indagação, da coleção mais absurda e crua que tive de ouvir. Erro? Talvez nascer seja um erro, do qual sempre me atribui culpa. Hoje, com a ciência de que não posso retornar pra tentar ser diferente do que sou me resta a confusão que me domina. Quero encontrar a válvula que libere, a substância que metabolize, a palavra que trucide, o encontro que dilacere, quero que minha violência morra e que não me mate, quero que meu ódio me abandone e me deixe só, como sempre fui e sou, quero que minha mágua parta de mim em cada lágrima como essa, agora, que escorre do lado esquerdo da face, quero paz pro passado que não volta e luz, faço esse pedido de urgência e de entrega, porque meu futuro é negro, as sombras se espalham pelo chão e meus passos são cegos, meu presente de espera e dor é tortura, e eu proclamo, com cada letra de cada palavra que ainda posso proferir, que eu não aguento mais. Minha vida é um acumulo absurdo de lembranças e medos, de rejeições e isolamentos, a solidão que é defesa também é prisão, e a exclusão de um amor que ama e que machuca e que o faz pretendendo incluir é meu maior algoz. Eu não escolhi tanta coisa, a maioria das coisas que aconteceram comigo eu não tive como escolher, como uma criança pode saber o que sentir ou não, o que ouvir ou não, o que assitir ou não, como repartir algo que não pode ser repartido. Eu só não sei das coisas, eu não sei quando, nem onde nem como porém um dia isso tem que acabar, e eu espero, com todas as forças que ainda restam dentro do meu coração, que a esperança continue a me guiar, e que eu saiba subir desse poço, fundo e escuro, gelado e infinito no qual eu cai, e que minha âncora seja leve pras minhas asas, e que não me acorrente, nas profundezas, na pedra mais pesada, pra sempre, até o meu fim.

28 de janeiro de 2009


É no amanhã que sinto a tua falta. Numa daquelas minhas viagens por ai, li um depoimento que foi como um reflexo, me senti escrito como quando você se olha no espelho, e naquele dia, se reconhece naquela imagem que ali está refletida. Sim, eu sinto saudades de coisas que não vivi, eu tenho medo de ficar sozinho e de perder coisas que não me pertencem, é como se eu esperasse por ter aquilo que eu nunca tive mas que eu sinto como deve ser ter. Uma vez eu achava que eu gostava do que não existia, e o fazia por não entender o que eu sentia e por não saber nomear o que me agita, me atormenta, me suga, me injeta, me amortece, me vitamina, me mantém, me segura, me entrega. Eu ainda não sei nomear as coisas mas começo a reconhecê-las, e as desejo, ainda que de forma tímida, culposa e parcial, pra mim e por mim. Não me imagino realizando-as, muitas vezes elas são um combústivel imaterial que me leva em sua direção e que dúvido muito que conseguirei encontrá-las. Meus desejos e sonhos são o que me mantém vivo, é como uma âncora-combústivel, que me alimenta e me acorrenta simultaneamente. Eu sou uma pessoa simultânea, e vivo uma vida una, porém dividida, recortada por condicionamentos materias e sentimentos que não escolhi, é estranho não querer ser quem se é, ou então querer ser quem é porém diferente. Sempre os iguais-diferentes, a busca do outro em você, eu tenho um problema com felicidade. Eu não consigo ser feliz. Eu tenho um vazio, uma dor, uma coisa estranha que me perturba, que me faz nunca querer estar onde estou, que me dá gosto por músicas tristes e que me escraviza dentro de mim mesmo, como um escravo açoitado por um capitão-do-mato que não é ninguém mais ninguém menos do que ele mesmo. Eu ainda sou aquele adolescente atrasado, que está descobrindo o mundo, pela primeira vez, como se sua vida não tivesse sido uma estréia, e sim um ensaio infértil e infrutífero. Foi um fracasso pra ser franco. Naquelas horas de nó na garganta e lágrima pronta pra escorrer, eu sinto como se eu fosse explodir implodindo, e minha vontade é de desligar, sem eufemismo, eu tenho vontade de morrer por que isso me silenciaria, faria aquelas vozes que gritam dentro de mim se calarem e quem sabe aquela coisa que me tortura e me persegue definhe e desapareça com o meu fim. Eu acordo e vivo todo dia movido pela esperança de um dia poder ter o que não tenho, de possuir o que não possuo, de viver o que não vivo e sobretudo o que não vivi. Eu tenho esse desejo absurdo de me realizar, de ser feliz adoidado e de fazer outras pessoas felizes. Meu desejo é de entrega, doação, cumplicidade, troca, amizade, carinho, amor. Eu desejo compreensão e um companheirismo cheio de coisas que se parecam comigo mas que sejam diferentes de mim, para que eu possa estar sempre mudando, me transformando e me compeltando. Numa ciranda que persegue a perfeição e que realiza com maestria a sina da vida. Me imagino numa sacada limpa, fresca, com um vento gostoso, leve, sentado numa cadeira macia, com uma bebida gelada, olhando pro mar lá fora através dos olhos de uma pessoa que olha pra lá e que sorri, que está ao meu lado viva, limpa, brilhante e linda, alguém especial, que mora em mim e que me faz ficar aqui, sempre, na mesma sala de espera.

16 de janeiro de 2009

Era um caminhante solitário, desengonçado, e triste. O vento em seu rosto era fresco, lavado pela chuva ele trazia encerrado em si a noite e o entardecer certeiro e gradual. A grama em seus pés estava verde, viva, vibrante, havia gotas fixas em toda a parte, em toda folha, como se num mosaico salpicado, bicolor e translúcido. No limiar do caminho estavam as pedras, sujas de terra, borradas num marrom manchado, forte e tenaz, ao longe se avistavam os pássaros, partindo, pra longe. E a sua companhia era a canção que tocava todo dia no mesmo tom, cantada pela mesma voz, acompanhada pela mesma dor, uma dor que não lhe doia na perna, no braço, ou nas costas, era uma dor estranha, intensa e branda ao mesmo tempo, uma dor que não passava, que esmorecia e revigorava-se sempre, uma tristeza leve e persistente. Seus pés calçados ignoravam a sola de seus calçados, e estavam molhados, atendiam ao tato sentindo a água gelada da chuva, intermitente, teimosa, cinza, como se os céus fizem a sua vontade. O garoto tinha lágrimas guardadas, extravasando, enchendo-lhe, na borda de sua razão, a fonte de sua distinta resistência. As árvores balançavam ao som do vento, como se em sintonia, ora leves, ora agitadas, elas cantavam ao seu modo, acompanhavam seu caminho, correspondiam à sua presença com sinais sonoros. Ele caminhava devagar e deixava a água escorrer por suas roupas, agora encharcadas, e tentava fixar seu olhar no horizonte, nublado, turvo, inconsistente. A palma de suas mãos mexia em seus cabelos como forma a suavizar sua tristeza, quem sabe talvez elas procurassem uma entrada para sua mente, uma forma de apalpar o que doia, de retirar o que latejava, de atenuar seus sentimentos, gastos, confusos, inconformados, marcados pelo caminho que jazia pelos seus passos traçados. A noite caía mais uma vez, junto dela raiava a primeira estrela, luzindo, perene, no começo do céu, acima da borda nublada e ainda clara pelos restos do dia. Suas roupas estavam pesadas e seu corpo já não lhe respondia mais como antes, cada passo era mais gelado, difícil, e cansado, e suas memórias vivas pareciam lhe dizer pra parar, pra encerrar essa jornada louca, solitária, esperançosa e penosa. Cada árvore acomodava-se agora que o vento arrefecia, grilos, esparços e cigarras, juntas, emitiam suas vozes com vigor, paixão e vontade, sensações e sentimentos que o abandonavam pouco a pouco, sua vida era como uma âncora em terra firma a ser carregada, apesar do costume, ela nunca estivera tão pesada, e residia nesse fato, da fadiga e do esgotamento, a essência dessa dor crescente e forte, uma desesperança tão real e palpável que ele já sentia o frio da noite nos olhos que marejavam e soltavam aquelas lágrimas salgadas, concentradas, retidas, e ele cedeu à força do peso, e sentou, na noite caindo, fria e gélida, sob aquela chuva sem vento, numa paz irônica e cruel, sob os pontos cravados de estrelas longínquas no céu e sonhos perdidos nos seus passos, pelo caminho marcado, que ficava para trás, sozinho.

15 de janeiro de 2009


A música soava leve e sincera, e ricocheteava em sua alma, tocava em cada medo, em cada temor, em cada sonho, cada espera, cada necessidade postergada, silenciada e amordaçada. Ele caminhava meio sem saber o que esperar, o que pretender, o que querer, na verdade, quanto mais se conhecia e sabia, menos entendia, uma razão estranha, uma ordem que não era dele, determinações, rótulos, marcas de uma vida tão descolorida, tão traçada a caneta, sem direito a borracha, lápis, correção branda, com coloridos de lápis de cor emprestados, ausentes, diminutos, rarefeitos. Amar era como o estranhamento de um encontro, como uma espera boa e gelada. Ele era um garoto que amava, em silêncio, em volume alto, ele amava em tantos tons, em tantos matizes, ele amava em canção, ele amava em palavras, ele amava em olhares, e ele amava cada dia quando acordava, e era cego, e inebriado, e tonto, e ele era tudo o que era pelo amor. Ele amava demais, e talvez amasse errado, ele era entupido de amor, amor que não fluia, não trocava, amor que não tocava, não sentia, amor que não se permitia, que se acorrentava, se escondia, amor que confundia, que atordoava, quem sabe tudo sempre fora questão de amor e dor e sentir?
Havia umas lágrimas escondidas em cada nuvem de cada pôr-do-sol dos últimos dias, havia um sentimento de tristeza por trás de cada música, cada filme, cada beijo assistido, em cada eu te amo visto, havia medo, tristeza, culpa e dor por de trás de cada palavra dita e sorriso entregue, havia tanto a ser discutido por ele. Havia amor, e tristeza, e a espera, e isso era tudo. Ele se montava todo dia, se desmontava em cada crepúsculo e ele pensava quantos dias mais, quantas semanas, quantos meses ainda resistiria a essa auto-linha de montagem, a esse medo de viver, a essa resistência de dor, a essa mágua do mundo, a esse céu escuro de nuvens carregadas que não deixavam espaço pra entrega, como a de cada raio de sol, em cada novo alvorecer.

11 de janeiro de 2009



Era como uma praia cinzenta, num inverno incessante, num fim de tarde nublado, gelado e escurecendo. Seu interior tinha tantas semelhanças com aqueles cenários, paisagens que traduziam suas emoções, cada novo dia, mesma vida estática, congelada, derretendo aos poucos, num degelo que obedece a uma lógica absurda e inversa. Ele sempre chegava a conclusão de que estava cansado. Um nada sempre adormecido despertava, e com ele a força destrutiva e irrefreável do vazio. Um silêncio tão gritante e pavoroso que extinguia cada sopro de vida, que eliminava cada feixe de luz, que definhava cada sonho, detalhe por detalhe, e os desfiava até sobrar um monte de ilusões gastas, recicladas, novas e velhas simultâneamente. As folhas que ele teimoso fez nascer, e brotar, e ganhar envergadura cediam ao passado de ausências, dor e medo e emagreciam como sua face jovem e marcada. O caule que sonhava ser vistoso, e que havia estado na transição de seu verde juventude para o marrom adulto, interrompera seu ciclo, ele enegrecia e se tornava mole, como se num choro interno, morrendo, não pudesse pedir socorro mas pedia. Ele tinha vontade de renascer ele diferente. Como o sol que irrompe a escuridão de cada manhã, ele queria amanhecer sem marcas na sua pele tão gasta, ele queria que suas mãos fossem tão mais lisas, e que o toque áspero não lhe pertencesse, ele queria ter os olhos brilhantes, de oceano, que ele já portara, ele queria receber novamente a capacidade de estado sinistro, gauche, ele queria ter podido ser tão feliz. O passado era como um jantar atravessado, mal digerido, não mastigado, como aqueles remédios encapsulados que somos obrigados a tomar e que nos trancam a garganta. Suas pontadas eram cada vez mais agudas, pontuais e concentradas. O entendimento havia trazido mais certezas e mais confusão. O céu nublado, a canção triste, incompreendida, sua alma cheia de inflamações, tantos cenários, quantos personagens e na soma de balanço, que tremenda solidão. O macio dos lençois rasgados ia embora com a incapacidade de exercer seu papel, o tempo chamava o tecido de volta, a se tornar resto, a se decompor em paz. Os gritos mudos de dentro dele ainda não tinham cessado. Ele estava cheio de um vazio povoado, de uma confusão pretendida a ordem, de barulhos inaudíveis, de canções tocando sem autoria e letra. Os tantos não fins de todas as histórias não suas eram muito para tão pouco espaço, as grades não eram tão maleáveis, sua capacidade não era tão dúctil, sua força era muito mais volátil do que sua esperança, seu medo vencia sua coragem, e a cegueira pela dor forçava a luz a não voltar mais, a reluzir dourada, e intensa, e por fim, se extinguir.

9 de janeiro de 2009


Sinto como se cada novo dia fosse uma nova chance não possível, como quando se convida alguém e sabe que esse alguém não comparecerá. As dúvidas que povoam cada pensamento são questionamentos de todas as ordens, múltiplas, reincidentes, de sortes pacíficas nos outros, no mundo. A busca pela satisfação dos sentimentos é uma batalha encerrada em si mesma porque não se há certeza do que satisfazer, em consequência de não se saber o que se quer realmente satisfazer. A insatisfação que motiva a raiva quotidiana que se morfa em tristeza reside no fato inquestionável e indubitável de uma realidade cruel e finita, limitada e pequena. Os limites sempre foram meu algoz mais impenetrável, invencível, intangível. O que espero se traduz pela não expressão, pelo que não digo, talvez pelo que nem sinto, porém pelo que espero. Não consigo mais escrever como eu gostaria, não consigo mais depositar nas palavras minhas dores, não, minha dor, porque apesar de latente e pontual, o sofrimento atinge o todo no âmago. Minha vida é a sucessão de novas esperanças falidas, de ilusões retroalimentadas e de sonhos que habitam do outro lado do limite. Sim, vivo na busca incessante por cruzar o limiar, por transgredir o imposto, por desafiar a sina do destino que me condicionou. Cada novo dia traz sempre as mesmas sensações. Às vezes mais intensas, às vezes mais tênues. Borradas ou não, sou como uma mancha que desbota e se renova sempre mais vívida, nova e intransigente. Como um botão de rosa que nasce, desabrocha e antes do ápice da plenitude da vida, regride, retrai, se encapsulando novamente, definhando folhas e caule, em semente.

7 de janeiro de 2009



Quando eu fui jovem a borda do horizonte era colorida, mesclada, amarelo-rosada, coloria o azul pálido que adormecia todo dia, no mesmo momento, em tempos diferentes. Tudo dentro dele era vulcão, instinto, urgência, tentativa, vontade, o desejo o consumia inteiro, e ele o alimentava como criação, elemento que mandava, guiava, sua ambição era desproporcional, sua inveja incontrolável, e sua ânsia por possuir e consumir a vida de seus sonhos tinha a dimensão de um céu inteiro, coroado por uma lua alva, brilhante, manchada, presente, imponente, quase-completa, parcial, incompletude que era como ele, pedaço de gente, meio sonho-meio ilusão. Emoções puras que implodiam, explodiam, misturavam, desciam e cresciam, subiam sem fim. A mesma espiral, temporal, do passado, as mesmas dúvidas, as mesmas questões, sempre o suspiro de incompreensão, a mesma interrogação que não o deixava tranquilo. Necessidades, incapacidade, falência da criatividade, da expressão, de comunicar, de endereçar, derrota do olhar, da coragem, da capacidade. Limites, barreiras, paredes, todas invisíveis, inorgânicas, imateriais, porém tão mais concretas que tudo que ele podia tocar. Correntes invisíveis, prisão inescapável, grades, céu do outro lado, mundo lá fora que convida e não recebe, desejo que não corresponde, que não lhe envia, visão quebrada, limitada, enclausurada, infinitas passagens sem saída, canto silencioso que atormenta, badalada que ressucita, pancada que desmonta. A tarde se deitava como quem foi sem querer, deixou-se perder, partir, e mais um dia cheio de coisas inomináveis se findava. O céu ainda estava borrado, tingido, aquarela celeste que inspira, natureza que brinda, conforta, som que leva dedo na tecla, emoção à tela, sonho pra fora, caminho nublado em que pisa ele.