2 de outubro de 2008

“E quando me dizias, meio tonto, que a solidão te comovia e te chamava, eu comecei a gritar por dentro, e só conseguia silenciar e implodir. E se eu dissesse tudo o que eu queria ao mesmo tempo que silenciasse na tua solidão, talvez eu conseguisse um pouco mais de paz, essa paz tão caótica a que tu sempre aspiraste. Mas não, eu só consegui fugir, fugir, fugir, correr o tempo todo de mim, o mais rápido que a minha lentidão podia e eu não podia, não podia correr dos teus olhos, do cheiro de pele, do choro da pele. ‘Acreditar na existência dourada do sol, mesmo que em plena boca nos bata o açoite contínuo da noite. Arrebentar a corrente que envolve o amanhã, despertar as espadas, varrer as esfinges das encruzilhadas’. Eu só podia permanecer ali, naquele banco sob os galhos cujas folhas já caíram há tempos, balbuciando o que eu não compreendia. ‘Todo esse tempo foi igual a dormir no navio, sem fazer movimento, mas descendo o fio da água e do vento’. Se a gente ainda tivesse nascido pela metade, como dizem, mas somos inteiros, eu era inteira: por que me partiste em cacos assim? Acho que vai começar a chover, eu sinto o cheiro da chuva. Me diz, o que eu faço agora? Hein? Agora que a tua solidão te chamou e preferiste qualquer resto de coisa a mim, o que eu faço agora? O que eu faço agora com todas as minhas vontades de nós, com todos os meus nós, com todas as minhas vontades? E o meu amor? O que eu faço do meu amor? Deixo a chuva levar, jogo fora enquanto estiver correndo e eu já corri tanto, meu amor. E o que eu somo à minha metade pra fazê-la inteira de novo? "Já não há mais moinhos como os de antigamente"

"O cavaleiro e os moinhos - Elis Regina"


By M.L.R.C

Um comentário:

Letícia G.R.D. disse...

Ei, querido.. pode me escrever seeeeeeempre que quiser.. Não sei se foi isso também que quis dizer.. mas escreve..
Espero que as coisas estejam mais calmas.. mas olha só.. acho fantátisco isso da Clarice..
...Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi.E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com as duas pernas é que posso caminhar.Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar...
Clarice Lispector

beijo!!